quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O romance de Edwin A. Abott intitulado "Flatland - a romance of many dimensions" teve em 2007 uma adaptação para o cinema com a animação homônima "Flatland – the movie". Muito mais do que uma simples versão para o cinema, "Flatland – the movie" é uma releitura do texto original, transformando um romance sombrio e profético do fim do século XIX num desenho animado ao modo de Disneyworld.

O romance se divide em dois grandes blocos: O Nosso Mundo (This World) e Outros Mundos (Others World). No início do primeiro bloco, o autor nos descreve em poucas palavras o que entende por Flatland: "Imaginai uma imensa folha de papel sobre a qual Linhas, Triângulos, Quadrados, Pentágonos, Hexágonos e outras figuras, em vez de estarem fixas nos seus lugares, se deslocam livremente sobre a superfície, sem dela poderem sair, quer por cima, quer por baixo, exatamente como sombras.."

Nesse trecho já se observa uma grande diferença em relação ao filme: a presença de Linhas. Essas linhas são na verdade segmentos de reta, que correspondem à forma de todas as mulheres de Flatland. Já no filme, as figuras geométricas têm sexo e as Linhas não existem como criaturas.

Outra importante diferença é o modo de organização social. A maioria esmagadora da população segundo o romance é formada por Triângulos Isósceles, que também não existem no filme. O papel social dos Isósceles é basicamente de serem operários ou soldados. Os Eqüiláteros pertencem à classe média – pequenos comerciantes – de Flatland. Em comum ao filme temos que Quadrados, Pentágonos, Hexágonos e outros regulares pertencem à baixa nobreza. A alta nobreza é formada por polígonos e por figuras que, com suas centenas de lados, podem ser considerados praticamente Círculos. Esses últimos são os padres (ou sacerdotes) de Flatland.

Existe uma Lei da Natureza em Flatland (também preservada no filme) que faz com que Eqüiláteros gerem Quadrados; estes por sua vez gerem Pentágonos, e assim por diante. Os filhos de Isósceles, entretanto, serão sempre Isósceles, mas com um ângulo superior ao dos seus descendentes. Quando o Conselho Sanitário e Social mede o ângulo de um Eqüilátero e obtém 60 graus, ele recebe o Certificado de Regularidade e passa a pertencer à classe dos Eqüiláteros.

A inexistência dos Isósceles associada a essa lei gera dois problemas no filme: um de ordem lógica e outro de ordem social. Socialmente, sabemos que a produção em qualquer sociedade é feita pela maioria esmagadora da população. Oras, se o trabalho braçal fosse realizado pelos Triângulos e Quadrados, como sugere o filme, esse seria de responsabilidade de uma pequena parcela da população, enquanto a nobreza paradoxalmente seria a maioria. Um fator mais grave e de ordem lógica é que, uma vez que Triângulos geram Quadrados, que geram Pentágonos, e assim por diante, na primeira geração de Flatland os Triângulos teriam desaparecido, na seguinte seria a vez dos Quadrados: em vinte gerações todos seriam polígonos e pertenceriam à alta nobreza.

O romance soluciona esse enigma de modo sofisticadíssimo por meio dos Isósceles que, juntamente com a figura da mulher, são fundamentais para entendermos as mais profundas camadas da ideologia de Flatland. Ora, uma vez que o romance é contado por um Quadrado, a sua visão de mundo é a partir da ideologia de seu país plano. Podemos perceber essa perspectiva já no início, em que o narrador mostra que o ângulo de uma figura aumenta de acordo com sua inteligência e diminui de acordo com sua periculosidade. Evidentemente, por uma questão física, triângulos extremamente pontiagudos e, sobretudo, mulheres são capazes de furar uma figura de mais lados apenas com o toque. Não é à toa que triângulos de 10 a 20 graus fazem parte do exército e da polícia, os com menos de 10 graus são presos e executados, enquanto as mulheres são confinadas em suas casas. Oras, mas como explicar o fato de que figuras com ângulos maiores – e mais lados – são mais inteligentes?

No prefácio do livro, o autor – não mais na figura de Quadrado / narrador - responde às criticas que rotularam seu romance de aristocrata: "Apesar de fazer justiça às faculdades intelectuais que permitiram a um pequeno número de Círculos preservar, durante várias gerações, a sua supremacia sobre a multidões de compatriotas, ele [O Quadrado] pensa que a história de Flatland fala por si mesma, sem necessidade de comentários adicionais, mostrando que as Revoluções nem sempre podem ser abafadas em sangue"

Esse pequeno trecho é a chave para entender toda ideologia de Flatland. Podemos inferir que historicamente os Círculos convenceram seus compatriotas de que eles, apesar de serem mais frágeis, seriam mais inteligentes, e organizaram toda hierarquia social subvertendo a tendência natural e assim os fracos passaram a dominar os fortes. A educação dos nobres passou a ser diferente da educação dos Triângulos, preservando o conhecimento abstrato para poucos. As mulheres, trancafiadas em casa, não tinham nenhum tipo de educação. Alguns Isósceles pontiagudos se tornaram o braço armando dos Círculos, servindo pra manter o status quo. A ideologia de que os mais inteligentes teriam ângulos menores só veio coroar o que, historicamente, conseguiu-se com o apoio dos Isósceles e com o domínio do conhecimento abstrato dos Círculos.

O livro narra ainda várias revoluções que ocorreram lideradas por Triângulos, ou mesmo por nobres que não foram admitidos no exame da Universidade. Em todas essas revoluções, a cooptação de Isósceles e mulheres sempre foi crucial para abafarem-nas em sangue.

Se todos esses elementos não fossem o suficiente para mostrar o empobrecimento do filme em relação ao livro, devemos citar o desfecho que o personagem tem em cada caso. No livro, ao encontrar a Esfera, é revelado ao Quadrado o Evangelho da Terceira Dimensão que, ao difundi-lo, é considerado como louco, é preso e condenado à prisão perpétua. No filme, não ao Quadrado, mas ao seu pequeno neto Hexágono é revelado o Mistério da Terceira Dimensão; com a ajuda da Esfera o Quadrado é libertado da prisão e o final aponta para uma infalível extinção da ditadura dos Círculos.

O romance é uma obra brilhante de ficção científica: o autor cria um mundo paralelo, com suas leis naturais e sociais, com criaturas extremamente humanas, que são muito mais que um exercício de imaginação, mas uma forma de compreendermos o nosso próprio mundo. A possibilidade matemática da quarta dimensão profetiza aquilo que, trinta anos depois, será concebido pela relatividade einsteniana. O livro é profético também sobre outro aspecto: narra práticas de eugenia que associamos quase automaticamente aos regimes fascistas do século XX.

O filme, por outro lado, é um clichê hollywoodiano: os personagens são superficiais e maniqueístas – ou extremamente maus (como os Círculos) ou extremamente bons (como o Quadrado e o seu neto). Na Flatland animada não existe machismo e tão pouco eugenia. As revoluções do livro são simplesmente ignoradas. "Flatland – the movie" é a imagem de um mundo que não tem nada em comum com o nosso, um mundo em que não há revoltas, não há assassinatos, nem presos, e tampouco uma massa de operários que sustenta a pequena parcela da figuras nobres. A Esfera aparece como um deus ex-maquina que não só revela a Verdade como no romance, mas intervém no final do filme em nome daqueles que foram bons, de um modo totalmente incoerente. É nesse sentido que o filme é a visão de um mundo muito menos sombrio que o do romance e que caminha inexoravelmente para um final feliz.

BIBLIOGRAFIA

ABOTT, Edwin, Flatland: o país plano.

Por Newton Marques Peron